Portico
Watu acordou entre os estrondos da mineração. Levantou da cama, lavou o rosto e preparou a refeição da manhã: com um pouco de gordura de porco, esfregou na frigideira pedaços de pão amanhecido. Preparou o café, na chávena quente mergulhava aos poucos o restante do pão.
Na frigideira aqueceu o feijão que havia feito no dia anterior, misturou um pouco de farinha e quebrou dois ovos. Acrescentou um pouco de carne seca e sal. Colocou tudo em uma lata de metal, fechou-a com a tampa de fivelas. Embrulhou o estojo em um pano roto com dois nós. Com esta merenda seguiria viagem.
Diante da luz do amanhecer difundida com a luz quente do campo de mineração, já não era capaz de lembrar que a sua cabeça encontrava-se aterrada em um travesseiro minutos atrás. Limpou os sapatos sujos de pó branco. Vestiu a calça do trabalho e uma camisa amarrotada com marcas de suor.
Sem contrato, Watu partiria sem qualquer perspetiva de regresso. Por isso decidiria ir para um território livre e tentar a vida como tantos outros. Não era preciso fechar a porta à chave.
A montanha escondia em si a dor da humanidade: a visão do mundo em conflito no assobio dos ventos frios do inverno. De um lado, rebeldes acampados. De outro, o mundo dos carvões em combustão. Pessoas à beira estrada pareciam mostrar a marca da história da violência em suas testas. A violência que se via a cada quilómetro de descida.
Do miradouro, turistas chineses deslumbram-se com o verde no horizonte. No horizonte, a grande mentira: em sua maioria pinheiros à espera dos incêndios e da indústria extrativa.
Em anos anteriores, dezenas de ciclistas ativistas abandonaram suas bicicletas ali em um momento de desespero. Lutaram pelo fim do centro de detenção dos refugiados mas retornaram de avião logo que a fome bateu à buzina.
Uma única bicicleta permanecia usável, mas uma carniça de cão estava presa junto às rodas. Na parede dizia: cave canem!
Watu decidira seguir a pé. Seus pensamentos viviam um fluxo vivo entre todas as dores do mundo. O caminhar afaga a inquietude, numa experiência recompensada com o desbravar ou o poder da descoberta.
Enquanto parecia falar com as nuvens, uma rajada de vento desafiava-o cortando sua face. O ar estava sempre seco de uma densidade calcária-calcítica. O cheiro era de pedra. Raras vezes tornava-se percetível no ar um sinal de humidade. Outras vezes, trazia o cheiro de material orgânico em decomposição.
Era sensível a diferença deste ar nas narinas de mucosas sedimentadas. Foi desta maneira que Watu percebeu que na mata haveria um animal selvagem e encurralado {como ele}. Podia sentir o cheiro forte e pegajoso da pelagem húmida e suja daquele animal. Queria voltar para vê-lo.
Observara a pouca profundidade da floresta que resistia aos ataques industriais através dos corpos de máquinas que se cruzavam em velocidade estonteante entre os vazios das árvores. Pequenas vibrações visuais que contrastavam com a tranquilidade do balanço das folhas. As árvores funcionavam com uma estrutura natural de distribuição da água da chuva pelas folhas finas e longínquas que funcionavam como pequenos reservatórios temporários antes que, gota a gota, folha a folha, a chuva alcançasse o chão. Lá permanecia o animal selvagem húmido e sujo.
As nuvens acinzentavam-se anunciando um toró. Watu sabia que a tempestade era comum a todos, como toca a cada um é o que difere. Por isso tinha pressa de chegar ao mar.
Em frente às ruínas do museu da quinta, um índio repetia palavras que soavam como um código secreto para a sobrevivência: cuia canoa cocar arara maracá. A memória caía como chuva sobre papel.
Pensou como a felicidade envelhecia as pessoas. A tristeza era a fonte de energia.
Não compreendia o que diziam sobre o oxigénio oxidar as pessoas de dentro para fora. Na infância estaria o momento maior de elogio à tristeza, entranhada na carne daquele que infantil desesperado sobrevivia através da construção do ego. Sobre a vida adulta, o desejo pelo consumo elevava a felicidade aos mais profundos sinais de velhice. Assim Watu concluiu: tanto procuravam a felicidade que esqueceram da moça tristeza.
Sentia um estranho otimismo no caminho. Emigrar para o leste era como emigrar para as noites mais negras. Retirou do bolso um recorte de jornal que havia guardado, falava da rota para o leste com destino para os Zapatistas.
A palavra era índio, índio Zapatista. A palavra dada ao nativo. A palavra que nomeia o nativo. A palavra, o problema da palavra. Pensara que a palavra possuía uma plenitude enganosa, enquanto a vida mantinha uma plenitude desequilibrada.
Qual o tempo que se segue à tragédia? O sol não nasce. Também não se põe. Por que continuamos a fazer dos nossos dias um intervalo entre o nascer e o morrer?
Finalmente chegou ao mar. Watu queria sentir a história na alma. Mar e guerra imaginada. As ondas pareciam sons de canhões e explosões. Na pedra, as armas antigas já bem comidas pelo mar.
Ali Watu permaneceria por alguns dias a espera do barco que o faria assim tornar-se emigrante em outra terra. Este barco seria o martelo da sua sentença em tribunal. Junto ao porto havia um pórtico escrito em cada coluna sociedade e estado, e na trave lia-se democracia.
Viva Zapata!
Viva Sandino!
Viva Zumbi!
Antônio Conselheiro!
Todos os panteras negras